Deus fez mais de uma costela


Muito se fala sobre a criação do mundo e os primeiros habitantes desta terra que hoje comporta bilhões de viventes espalhados pelo mapa mundi a fora. Ouso, no entanto, contestar o cancioneiro bíblico e contar a minha versão dos fatos. Ou melhor, vou apenas aparar algumas arestas e tergiversar a respeito de algumas distorções existentes em nosso livro sagrado.

Pra começo de conversa, Deus era um gaúcho velho guapo, macanudo, bagual y peleador. Uma mistura de Olívio Dutra, Paixão Côrtes e Dennis Quaid, figura de porte lendário e que possuía notável facilidade em atrair as gurias de pagos distantes.
Certa feita, apareceu o negócio de uma tal Estância do Paraíso, que pertencia à família dos Éden, posta à venda a preço de banana. Deus, que sempre guardava suas economias amarrada a tentos debaixo dos pelegos, sacou uns trocos da guaiaca e arrematou a propriedade a fim de propagar sua criação de gado de corte.
Chegando Nosso Senhor à fazenda, tratou de reunir os anjinhos da guarda, seus fiéis escudeiros nas campereadas celestiais e mandou que matassem um boi gordo para assarem um costelão doze horas. A bem da verdade as horas ainda nem existiam naquela época, mas já chamavam de costelão pelo bem da causa gaudéria. Faquearam um brasino aspudo, Gabriel riscando o couro, Serafim afiando as facas e Adão lavando a buchada.
É bom que se diga que Adão não era anjo, e sim o capataz mais antigo de Deus Pai, a quem ele tratava apenas por Todo Poderoso. Deus ouvia aquilo e achava que era bom. O velho Adão sabia tudo de carneação, mas gostava mesmo era de lidar na fonte lavando o bucho pra depois caprichar no mocotó. Os anjos admiravam Adão por sua proficiência, porém preocupavam-se com o fato de, já com idade avançada, aquele homem - único na Terra - ser um sujeito solitário. Sim, Adão foi o primeiro solteirão do Universo. A verdade é que as gurias tinham olhos somente para Deus, fator que complicava as chances do varão desencalhar.
Bueno, iniciada a lida com a matança do boi, cada um tratou dos seus afazeres. Faminto e ávido por ver a brasa queimando a costela, o Pai Celeste começou a ficar ansioso pela ausência de alguém que acendesse o fogo de chão para dar início aos trabalhos do assado. Foi então que enxergou um piazito moreno ao longe, brincando com um gato preto à beira de uma lagoa. Deus coçou seu imponente bigode grisalho em tom de curiosidade, pois não recordava da figura daquele guri em suas tropeadas.
Tratava-se de Lúcifer, filho de Mefistófeles, antigo capataz da fazenda do Éden, falecido em virtude de uma picada de cobra no pomar de maçãs. Após a morte do pai, o guri andava teatino pela estância brincando com seu bichano de estimação e cuidando de uma ou outra vaquinha que havia restado antes da venda da propriedade a Deus.
Em dez minutos de prosa, descobriu-se que o menino era vegetariano. Em virtude de seu amor pelos animais, decidira não mais consumir carne animal, o que justificava sua pequena plantação de soja na horta atrás da casa da fazenda. Deus achou graça daquela escolha mas, como sempre, foi justo e respeitou o guri. Até porque, entre outras façanhas, o danado era bom quando lidava com fogo. Num tempo em que não havia fósforo, isqueiro ou carvão, era raro quem soubesse manejar os gravetos com habilidade suficiente para acender um braseiro para assar um bom churrasco. E isso Lúcifer sabia fazer com maestria, ao contrário dos anjos que eram todos frescos e não gostavam de ficar cheirando a fumaça. Adão até tinha lá seus dotes de assador, mas estava ocupado demais com a lavagem do bucho.
Deus então convidou-o a participar da festança contribuindo com a manutenção do fogo. O infante, que não fazia ideia do que significaria ficar doze horas mandando lenha na fogueira, aceitou de prontidão. Rapidamente, forjou uns gravetos a machado, catou umas folhas secas, cavou a vala onde Nosso Senhor determinou e, em dez minutos, as labaredas pipocavam de maneira ardente. Vendo tudo aquilo, Deus deu uma gargalhada de satisfação e viu que era bom. Com galhardia, exclamou:

- Cacilda, mas este guri é o diabo!

Espetaram o costelão num grande pedaço de pau e fincaram à beira do fogo. Sentaram todos à volta do assado, Deus cevou um mate e chamou Adão para um dedo de prosa, enquanto Gabriel pegou sua gaita e passou a entreter os demais anjos com a boa música gaúcha. Serafim tocava violão e Natanael o bombo leguero. Lúcifer dava pulos em volta da fogueira, rachando lenha e voltimeia afagando seu gato preto. Era dia de festa na Estância do Paraíso.
Nas primeiras quatro horas foi tudo às mil maravilhas. A partir dali, o sol do meio-dia passou a castigar as melenas douradas dos anjinhos, que fugiram para a sombra das macieiras a fim de tirarem uma pestana. Deus, que tinha planos para Adão, chamou-lhe para perto de onde haviam carneado o boi e pedia-lhe opiniões a respeito do que fazer com a outra costela bovina que havia sobrado. Antes, contudo, ordenou que Lúcifer tivesse a máxima atenção com o braseiro e não permitisse que o fogo apagasse em momento algum.
As horas seguintes foram um inferno para Lúcifer. O guri se viu louco com aquele sol rachando o melão, as mutucas picando seus cambitos sem dó nem piedade e, o pior de tudo, tendo que assar um costelão do qual nem mesmo provaria um pedaço sequer! Suando em bicas, o piá praguejava a costela, xingava os quero-queros que não paravam de gritar um só segundo e cuspia de nervoso. Há quem diga até que, num ato extremo de raiva, chegou a urinar na beirada do espeto sem que Deus percebesse, de tão tinhoso que estava com a situação.
Passadas onze horas, o pobre já fedendo a fumaça, nem o gato mais parava perto. Vieram todos, Adão virou a costela, os anjos trataram de arrumar os pratos e providenciaram uma rápida salada de tomates, enquanto Deus estava provisoriamente desaparecido. "Deve ter ido sestear", pensou Adão enquanto lascava um pedaço do costelão para provar:

- Guri, esse gato andou mijando na carne? - o gosto ácido não enganava os beiços do velho capataz.

Lúcifer negou com veemência, mas ria furtivamente pelos cantos. Sua raiva aumentou ainda mais na hora da janta, quando todos lhe deixaram de lado apenas com um tomate picado no prato e se atracaram naquela carne como se não houvesse amanhã. Deus juntou-se a eles e trouxe consigo um saco que continha apenas um pão. Dizem que aquele pão alimentou a todos e ainda sobrou pro café.
Quando todos já haviam dissecado o costelão, Gabriel ainda chupava um osso de revesgueio quando Nosso Senhor surpreendeu a todos com uma novidade incrível: havia vendido a costela que sobrara a um mascate e usou o dinheiro para oferecer como dote à filha de um plantador de maçãs da casa vizinha à fazenda. Tratava-se de Eva, uma das prendas mais lindas da região. Deus percebera que Adão tinha certo interesse pela guria e tratou de arranjar o casamento dos dois. As más línguas diziam que ela tinha uma cobra de estimação. Que pecado.
O que ninguém sabia era que Lúcifer mantinha um amor platônico por Eva e assistiu a tudo aquilo enquanto se lavava na fonte. Espumando de ódio, rogou uma praga àquela data festiva e determinou que todo costelão assado naquele dia teria seu fogo amaldiçoado e a carne com gosto pior que o de mijo. Mais tarde, com o surgimento do calendário romano, descobriu-se que essa história aconteceu num dia 31 de janeiro.

***

Esta pequena passagem que a Bíblia não nos conta me fez lembrar da primeira vez que assei um churrasco. Eu devia ter 10 ou 11 anos, não mais que isso. Intentei que queria assar uma carne para meus amigos e azucrinei os ouvidos de minha mãe até que ela comprasse tudo o que precisávamos para a fumaceira. Ela até tentou alegar que minha inexperiência seria um complicador, mas não dei ouvidos aos conselhos maternos e bati o pé. Ganhei aquele churrasco na insistência.
Ver aquele espeto tostando na churrasqueira improvisada com tijolos foi a glória. Ficamos todos à volta do fogo rindo, contando piadas e virando o espeto de vez em quando. É claro que eu não fazia a mínima ideia de quanto tempo seria necessário para que a carne estivesse no ponto, então resolvi calcular na base do olho. Meia hora depois, com o aspecto externo dando a impressão de que era chegada a hora da janta, resolvi servir o banquete aos presentes.
Estava cru. Horrível. A graxa corria nos cantos da boca a cada mordida, virou numa paçoca braba. Tive de aguentar no osso a expressão de "não diga que não avisei" da minha mãe. Todavia, a verdade é que todos estavam felizes da vida pelo nosso feito, afinal de contas, havíamos assado um churrasco sozinhos. A confusão de estar à volta do fogo, os amigos reunidos e aquele ambiente faceiro foi suficiente para suplantar o fracasso da carne crua e mal assada. Foi um aprendizado importante para meu desenvolvimento como homem.

Continua...

5 comentários:

  1. Danieli Moschen Dutra10 de janeiro de 2013 às 23:29

    Sensacional!

    Ri como se não houvesse amanhã...

    =D

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  2. Ficarei a com o dedo no F5 até VISUALIZAR PARTE 2!!!

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  3. Assim como o Fernando Mohr, mais conhecido como Popins, ficarei com o dedo no F5 até que seja postada a segunda parte.

    Sensacional esse texto. Já imagino o que vem a seguir... hehehhe

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