O Susto

Ontem aconteceu algo medonho na aula de um curso que estou fazendo. Estamos nos preparando para um concurso público, e a matéria de ontem era Administração. Devo confessar-lhes que nutro efervescente aversão a estudar assuntos chatos e monótonos, mas, vá lá, a vida requer certos sacrifícios para se chegar ao fim do arco-íris, encontrar o pote de ouro e fazer montinho no duende guardião das riquezas de lá.
Chegada a hora do intervalo, partimos para a blateração costumeira acompanhada do tradicional cafezinho amigo, aproveitando aqueles frondosos minutos de descanso. Passadas algumas semanas, fiz parceria com os colegas, cada um tem uma experiência de vida e todos têm o mesmo objetivo: mamar nas tetas do governo.
Na minha turma, porém, tem um cara quieto. Desde o primeiro dia, nunca vi o cristão dirigir a palavra a ninguém. Ele chega, senta sempre no mesmo lugar, assiste à aula e vai embora com a discrição ímpar de um Sherlock. Por coincidência, ontem sentei ao seu lado, o que não mudou nada, já que o sujeito não trocou sequer meia sílaba comigo.
Tudo corria às mil maravilhas até que, lá na classe da professora, ela comentou com algumas colegas que a rodeavam:

- Vocês viram que foram aprovadas mais de 10 mil vagas para este concurso?

Mal a catedrática terminou a frase, algo surpreendente aconteceu. Ao meu lado, o cidadão ergueu os dois braços e desandou a gritar. Assim, de súbito. Tá certo que a gente quer passar no concurso, mas daí a comemorar o número de vagas chega a ser um exagero. Sete segundos depois, contudo, ele seguiu gritando e começou a se debater de maneira descontrolada. Quando percebi que não era comemoração porra nenhuma, entrei em choque, paralisei: o vivente tava ganhando um faniquito bem ali, debaixo do meu nariz.
Minha primeira reação foi, naturalmente, proteger o dito nariz, afinal de contas, a cena era algo até difícil de descrever. Todo mundo ficou em pânico, enquanto o colega, que pra magrinho não serve, se debatia cada vez mais, emitia ganidos assustadores e, valha-me Deus, dava a impressão de que, se não estava recebendo uma entidade, dali a poucos minutos partiria para junto daqueles que já se foram.
Diante daquela doideira, todo mundo esqueceu as lições de Administração e ninguém sabia o que fazer, era cada qual mais atrapalhado que cachorro bichado nas orelhas. Nisso, um facho de luz desceu dos céus sobre a classe de uma colega, que conseguiu ter a serenidade de acudir o cara naquele entrevero e segurou sua cabeça enquanto o corpanzil despencava no chão, espalhando café por todo lado e, daí sim, chamando a atenção de todo mundo, até mesmo quem estava do lado de fora da sala. Nisso, alguém sentenciou:

- Ataque epiléptico.

Quando ouvi isso, voltei à órbita. Sim, porque até aquele momento eu permaneci estático diante daquele lusco-fusco pavoroso. Nunca tinha visto uma pessoa comemorar 10 mil vagas na vida, e muito menos percebido que não era nada de alegria, e sim um piripaque. Alguns já tentavam ajudar, começaram a se mobilizar à volta do pobre, ao que alertei que deixassem a colega agir em paz, afinal de contas, reza a lenda que nesse tipo de convulsão o melhor mesmo é segurar a cabeça para o lado, evitando que a pessoa engula a língua, ou seja, ela havia agido corretamente.
Ele foi ficando roxo, azul, preto. De repente, branqueou de uma hora pra outra, deu um suspiro, virou os olhos pra riba e apagou. Por Jeová que pensei que tivesse batido as botas. Foi tipo cena de filme, sabe, deu aquela respirada violenta e cataplof. Quando comecei a raciocinar acerca da morte que estava presenciando, o danado deu um bufo, mas um bufo, palavra de honra que aquilo foi um bufo pra entrar pra história. Com o bufo, veio uma cuspida velha de vencer torneio, uma sangueira boca abaixo e, pelas barbas do profeta, voltou a respirar.
Naquela de vai-não vai, eis que alguém teve a lucidez de sugerir que procurássemos um remédio na mochila. Não havia nada. Disseram, então, para que alguém procurasse um contato no telefone dele. Sendo o vizinho da classe ao lado, o celular caiu nas minhas mãos trêmulas. Bueno, tava na hora de deixar de ser mariquinha e começar a ajudar em alguma coisa. Desatei a procurar. "Casa". Não tinha. "Mãe". Também não. Parti, então, para as chamadas recentes. Uns cinco números abaixo, estava lá, bem bonitinho: "Amor".
Não tive dúvidas, liguei pro Amor. Ora, ninguém põe esse nome no contato de um colega do futebol, tele-entrega de cerveja ou para a tia-avó de Passo Fundo. Amor é Amor, caramba! A pessoa amada, aquela que nos faz tremer e... bem, no caso do rapaz, não era só isso que lhe provocava tal comportamento. Sendo assim, eu precisava buscar ajuda, e o fiz. Disquei o número que ali constava.
Atendeu uma voz feminina de pelúcia, cousa rica de se ouvir. Quéli. Pela entonação, imaginei que a grafia fosse essa, com Q e acento agudo no E. Sem ípsilon, que a dona daquela voz não tinha ípsilon no nome, tenho certeza que não.

- Oi, Quéli, meu nome é Antônio. Tu é alguma coisa do Caio?

A resposta foi deveras incisiva:

- Eu era...

Senti a dor de uma desilusão amorosa dilacerar minha carne. Juro, quase que ganhei um ataque também em compaixão ao colega em apuros. Ora, a agenda do telefone dele denunciava, estava ali: Amor. Ele ainda a ama, mas ela não é mais dele. Como dói o coração de um homem desiludido e largado pela mulher da sua vida.
Tive vontade de berrar "então é por tua causa que o cara tá morrendo, desgraçada!", quis xingá-la, quis vingar aquela cena pavorosa pela qual o rapaz estava passando, beirando a morte e convulsionando em plena sala de aula, enquanto tentava estudar para passar no concurso público, buscar um lugar ao sol e, quem sabe, provar à Quéli o quanto ele merecia o seu amor. A vida é injusta, caros leitores, muito injusta.
No entanto, o calor da hora e a diplomacia fizeram com que eu deixasse de lado as questões pessoais e relatasse à menina o que acontecera há alguns instantes. Com sua voz de porcelana chinesa, ela apenas balbuciou:

- Aimm, meu Deus - o "aimm" assim, com eme, lufado com voz de carmim. Senti profunda pena do colega outra vez.

Perguntei o que fazer, pedi ajuda. Ela, com o raciocínio rápido de uma mulher que, mesmo não amando mais, ainda sente compaixão pelos bons momentos vividos, tomou decisões pontuais e sagazes. Disse-me que ligaria para a mãe dele e, em breve, daria retorno. Sugeriu que o levássemos para a Unimed, mas a SAMU já estava a caminho, graças a colegas mais ágeis do que eu que, com minhas pernas bambas, ainda fora contemplado com o desprazer de pagar o baita mico de achar a ex-namorada do vivente numa hora nada agradável.
O desfecho da história até que foi rápido. A SAMU chegou logo, aos poucos ele acordou e, meio grogue, concordou em acompanhar os enfermeiros, ainda que não lembrasse de nada (sorte a dele) e afirmasse categoricamente que estava tudo bem. "Sim, e aquele café se esparramou por magia na tua frente, né, querido"? Nessas horas é preciso conter a sinceridade e ser solidário às intempéries da saúde alheia.
Bueno, o fato é que a aula acabou ali. Não se falava em outra coisa, era gente tremendo, nervos à flor da pele e o comentário geral de que a primeira impressão foi a de que, realmente, ele havia comemorado as ditas 10 mil vagas aprovadas. Talvez daí tenha decorrido o pânico generalizado quando todos perceberam que, na verdade, tava era baixando o capeta no sujeito.
Faço votos de que hoje, ao chegar na aula, o colega esteja lá, recuperado do susto e pronto para buscar a classificação junto comigo no concurso. Se Deus quiser, a Quéli volta pra ele! Mas, por via das dúvidas, vou voltar a sentar no meu lugar de origem e proibir a professora de comentar a respeito de vagas aprovadas e assuntos correlatos. O seguro morreu de velho.

15 comentários:

  1. Ótimo, com enfase especial ao parágrafo em que tu explica porque Amor deve significar Amor, e às especulações a respeito de ele ainda gostar dela e tal.

    E nesse fica evidente a presença de davidcoimbrices no teu estilo, o que só aumenta a qualidade.

    Abração!

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  2. Parabens meu caro!
    Mais um blog fantastico que eu descubro nessa vasta rede.
    Eu estava aqui, vivenciando minuto a minuto o piripaque do sujeito. E mais!, ao ligar para "amor".. pense bem.. uma "ex" ate que nao foi de todo o mal!! eu ja estava imaginando coisa pior!!! imagina as consequencias caso fosse outra a voz senao da "Queli".
    "nunca tinha visto alguem comemorar 10 mil vagas" = sensacional!!!
    Gde abraco!

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  3. AAAI, morri!Hahaha, nossa Antônio-barra-guri-do-que-momento, consegui me enchergar lá na tua aula. Já passei por cursos preparatórios, e sim, eles tem uma capacidade impressionante de reunir um número exorbitante de pessoas problemáticas e extressadas. Lembro das minhas aventuras em sala de aula, escapando daquela mulherada, que, juro por Deus, estava com os nervos à flor da pele estudando feito bicho para "mamar nas tetas do governo". Uma delas quase me bateu uma vez, olha, é complexo, saravá! Hahahaha
    Ao menos rende várias aventuras para se escrever, não é mesmo?
    Beijoo!
    Adorei o texto, pobre do rapáz epileptico. Não pelo ataque, mas por não ter o amor da Quéli (boa, certamente não tem K nem nenhuma pobrice) nem sua voz de porcelana. Dsc, vida difícil.
    ;]

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  4. Quando iria imaginar que ao ligar para o "amor" do colega receberia aquela resposta evasiva ..." eu era".
    Não sei qual o momento mais trágico para o rapaz em toda essa história, mas que ela é boa, isso ela é.
    Obrigado por dividi-la conosco.

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  5. Eu amei o texto, como sempre, inteligente, com pitadas leves de humor e incontestáveis verdades.

    :)

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  6. Marquinhos,

    Gracias, guri! Comparar meus humildes rabiscos ao mestre David é sempre uma regalia e tanto!

    Abraço!

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  7. Chris,

    Rapaz, agora também parei pra pensar que, realmente, podia ser pior. Se atendesse um homem com voz de trator, aí sim eu ficaria todo errado.

    Abraço!

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  8. Jéssica,

    Ah, guria, sem palavras pelos elogios e, claro, a menção honrosa lá no teu blog. Essas peripécias pelas quais passamos certamente rendem histórias hilárias.

    Beijo!

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  9. Rafa,

    Te garanto que essa resposta, naquele momento trágico, era a última coisa que eu esperava ouvir... De qualquer forma, pelo menos rendeu esse texto.

    Abraço!

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  10. Mari,

    Ah, menina! Você, como sempre, muito gentil em suas colocações e elogios. Obrigado!

    Beijo!

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  11. Nossa Antonio muito bom !!
    Por vias hoje entro no msn e vejo 500 textos no blog.. resolvi entrar e ler o último.. incrivel ataque epiletico não é que sou treinada diariamente pra enfrentar esse tipo de situação a bordo, fiquei pasma de como o texto me fez rir pois é exatamente assim que o povo reage dentro de um avião e aí não tem ligar pra Amor é o desespero mesmo, único momento que eles realmente respeitam uma Comissária de Bordo!! Já que samu nao pode vir voando .. quem sabe no futuro.. Bom mas vim mesmo é pra dizer que tu escreves bem demaiss.. parabéns ..
    um grande beijo Josi

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  12. Mr. Ricardo Faria
    Antonio,
    Cara, ficou muito bom,
    Particularmnete gostei da parte em que tu fala que o cara tva ganhando um faniquito do teu lado.. É D+.

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  13. Querido Antonio

    A gente guarda mesmo esses gestos tão importantes, né? Quem fez até esquece, mas nós que recebemos não. Tudo guardadinho numa caixinha que carregamos bem dentro de nós.

    Obrigada, obrigada, mil vezes.
    Beijo grande prá ti e um abraço bem apertado na vó.

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  14. Arrasou com este texto!
    Tens um poder incrível de narrar os fatos de forma cômica!
    Parabéns, adorei!

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  15. Só você tem o dom de transformar tragédias em com´dia Ton! Demais. hahaha

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