O peixe morre pela boca, mas continua cru

Aí está mais um fim de ano. As pessoas correndo contra o tempo, a balança e a justiça divina para eliminarem quilos ingratos, planejando confraternizações, comprando chinelos e caixas de bombons para aquele amigo secreto chato que não queria escolher de jeito nenhum e estocando espumante com a finalidade de encher a cara na virada do ano.
Enquanto isso, o Que Momento está prestes a completar seu oitavo ano de vida e é preciso contar histórias. Tire um tempinho para ler mais esta peripécia enquanto come sua barra de cereal, pois vou dividir com você mais um daqueles episódios que poderiam ser evitados caso eu tivesse algum recato e conhecimento acerca da culinária japonesa.
Há coisa de três semanas atrás, dia 22 de outubro, a Dani e eu completamos nosso primeiro aniversário de casamento. Sobrevivemos, enfim, à primeira batalha! Bem, isso é o que dizem os céticos, estes que adoram espreitar a felicidade alheia. Casar é divertido, recomendo a todos. Tem seus pormenores, afinal, a vida não é comercial de margarina, mas ao menos em nossa casa administramos bem nossas diferenças. Ela manda, eu obedeço e talicoisa.
Bueno, mas a ingratidão comemorativa veio pelo fato de nossas bodas caírem justamente numa segunda-feira. Fomos traídos pela maledicência do ano bissexto, esta invenção impiedosa que ajusta as válvulas do planeta enfiando um dia a mais no fim do fevereiro. E é "do" mesmo, a concordância está correta. Minha avó usava o nome do mês quando queria dizer aquela palavra que é o símbolo do cobre na tabela periódica, o que torna automaticamente minha penúltima frase uma piada interna bem engraçada.
O agravante da segunda-feira é que neste semestre estou atopetado de atividades estudantis até os bigodes neste dia. Começa de manhã e vai até às dez da noite, o que punha uma bigorna insólita em nossos planos amorosos e procriadores. Foi então que, pela primeira vez neste início de vida acadêmica, resolvi matar a aula da noite para cair nos braços de minha esposa. Não que isso signifique um feito de Hércules, mas ocorre que tenho tentado ser o mais certinho possível com os estudos, o que já vem me conferindo um certo bullying por parte dos colegas que ficam me rotulando de nerd. Que o Pai os perdoe, pois eles realmente não sabem o que dizem (livremente inspirado em Lc 23,34).
Porém, o que eu não esperava era encontrar justamente o professor bem na hora em que fugia furtivamente por um dos corredores. Tive de matar no peito e dizer a verdade, nem pra matar aula direito eu sirvo. O gesto do catedrático foi deveras aprazível: me deu os parabéns, apertou minha mão e disse "vá para casa ficar com sua esposa". O que ninguém sabe e revelarei agora é que este professor tem cruza com japonês. Olhos puxados, rosto redondo, enfim, japonês é japonês, todo mundo conhece. Isso fez toda a diferença e aquele aperto de mão foi um sinal dos céus, só que eu não percebi.
Fui para casa. Já entrei chutando a porta dando berros de alegria, tirei a prenda pra dançar e bailamos um chamamé na sala mesmo. Mentira. Me atirei no sofá, tirei os tênis e liguei a televisão. Mas isso é apenas praxe, porque na realidade ficamos ali, em clima de casal, decidindo onde iríamos jantar para comemorarmos nossas lindas bodas de papel. Eis que a segunda-feira então manifestou seu lado sórdido.
Malditos sejam os que não abrem restaurantes às segundas! Pode isso, Arnaldo? Pizzaria fechada, churrascaria sem promoção de mulher não paga (quem poupa tem, não me critiquem), tudo conspirando contra a felicidade de um jovem casal. E a vontade de gritarmos ao mundo o sucesso de nosso enlace, como que fica? Até propus que saíssemos nus correndo em disparada pela rua, de modo a protestar contra os sacripantas que não fornecem alimentos aos consumidores, mas obviamente a Dani negou.
De repente, senti um formigamento na mão. O cumprimento do professor japinha. Tive uma epifania:

- E se pedíssemos comida japonesa?

Nunca comi peixe cru, parecia uma boa pedida, comemorar a data tão especial com algo inovador para a relação. Especialistas dizem que o homem tem de participar desse lance de propôr novidades que tragam o bem-estar para o recôndito do lar. É, mas não me venham com fio terra que tudo tem limites.
Definimos pelo japonês. Pesquisamos no site o que pediríamos e meu instinto felino se manifestou no exato instante em que salivei de vontade de comer peixe cru. As opções eram inúmeras, só que sem fotos. Ou seja, tanto fazia me dizer se era sashimi, hitachi ou simbato iamasaki, que eu não entenderia bulhufas. Pensei que fosse mais simples, aqueles filezinhos de peixe cru com arroz, tipo essas dietas que a galera tá fazendo por aí.
Diante daquele impasse, apelamos para a linguagem universal dos números e partimos para os combos que o site oferecia. Quando comecei a ler, tive a certeza de mesa farta. "Quarenta fatias de sashimi, 16 nigirizushis, 16 makizushis, 8 uramakis califórnia", num total de oitenta unidades! Caramba, pensei que seria a noite de encher o bucho! Ora, pense no mesmo número de fatias de pizza, dá pra um batalhão comer. E esse foi o meu maior engano.
Fizemos o pedido. Cheguei a tomar dois copos d'água para abrir mais espaço no estômago, esfregava as mãos de ansiedade feito um gato negaceando um passarinho, a metáfora fazia todo o sentido. Quando tocou o interfone, fui pessoalmente buscar aquele mundo de comida na portaria. Pela quantidade que dizia no site e pelo preço, pensei que traria nos ombros a baleia de Jonas fatiada e banhada em molho shoyo. Cheguei a alongar os músculos do braço para evitar uma distensão.
Ao chegar na portaria, percebi que um erro de cálculo poderia ter ocorrido. O entregador, que nem japonês era, pegou toda a minha grana e em troca me deu um pratinho de sobremesa embalado em papel machê vermelho. No total, não pesava duzentos gramas. Fiquei visivelmente preocupado e notei que o motoboy ria de soslaio enquanto colocava o capacete, montava na moto e voltava para seu destino. De todo modo, levei a janta pra casa curioso pra saber como podiam caber oitenta unidades de comida dentro daquele recipiente tão diminuto.
A Dani também riu quando entrei em casa. Minha cara de decepção já estava bastante evidente. Gente do céu, oitenta quilos de picanha, ou fatias, que seja, é muita carne! Minha associação foi errada, admito, mas ser traído pela culinária japonesa é como levar um Hadouken da Chun Li. Abrimos o pacote e meu queixo foi ao chão. Ali estava lâminas finíssimas, eu disse FINÍSSIMAS, de salmão, uns bolinhos de arroz enrolados em algo que parecia papel carbono e o resto eu nem lembro porque apaguei da minha mente. Mas envolvia peixe cru e um patê pior que aqueles de ganso. O pior, no entanto, foi o molho shoyo vir em sachê. Sachê! Isso é pior que comprar carne embalada a vácuo, é um acinte às tradições orientais! Mestre Ancião, o cavaleiro de Libra, arregalaria o grão dos olhos e perderia a compostura se visse aquela cena deprimente deteriorando suas tradições sagradas.
Se você não pode com o inimigo, junte-se a ele. O negócio foi sentar e comer. A partir dali, meu lado gaudério começou a se manifestar com muita intensidade e não pude deixar de imaginar o velho Paixão Cortes usando aqueles pauzinhos pra comer arroz em bolas. A cada mastigada que eu dava, sabia por que os gatos gostam tanto de Whiskas. É muito melhor que peixe cru! Engolia aquelas coisas molengas feito um chiclete e tascava um naco de bolo de arroz goela a baixo, que o troço tinha custado os olhos da cara. Minha garganta queimava com o molho shoyo, mas era o que dava um gostinho para enganar o estômago, ainda que parecesse que estava molhando presunto no café.
De repente, vi uma florzinha amarela no canto do pratinho. Parecia chocolate branco. Com a fome que eu estava, enrolei aquilo nos pauzinhos e comecei a mascar. O céu e a terra viraram um só bolo de fubá e lágrimas brotaram nos meus olhos. O mais impressionante é que eu conhecia aquele sabor, mas meu paladar, já prejudicado pelos lambaris comidos, teimava em não distinguir. De repente, um facho de luz brilhou nos céus e iluminou minha mente. Um grito abafado emergiu de meu pâncreas dizendo: gengiiiiiiibre!
Masquei uma toiça de gengibre! Que troço bem ardido, Deus do céu! Fiquei dois dias com a garganta mais limpa que a do finado Nelson Gonçalves, uma vez que fiquei mastigando alguns segundos até identificar e cuspir longe aquela esbórnia.
A salvação da noite foi o suco de abacaxi feito pela Dani e um chocolate que ela comprou de sobremesa, muy delicioso por sinal. Posso dizer que foi praticamente a minha janta. O que sobrou daqueles peixes, e realmente sobrou bastante, sugeri que fizéssemos um refogado com arroz de verdade, que não fosse em bolas e sem papel carbono. Tudo o que minha esposa conseguiu fazer diante da minha sugestão foi rir um bocado até ver que realmente eu falava sério. Mas, não, não fizemos. O pratinho ficou na geladeira até a carne estragar e depois foi para seu único destino dentro de qualquer residência onde eu venha a morar pelo resto de meus dias: o lixo.
Este foi o nosso primeiro aniversário de casamento. Uma história de tantos anos não poderia produzir um episódio menos inusitado, dado o xucrismo de meu paladar e minhas convicções alimentares ortodoxas feito embalagem de Maizena. Confesso que, na segunda-feira seguinte, não apertei a mão do professor e ainda senti pena dele. Graças a Deus, nasci onde se come churrasco.

6 comentários:

  1. Claro que tinha que acontecer alguma coisa né Ton?! hahahaha.
    Poxa, mas peixe cru é tão gostoso! hahaha

    E continue assim: A Dani manda e você obedece! kkkk

    òtimo texto, ótimas risadas.

    Abração. :)

    ResponderExcluir
  2. OMG ...sempre impagavel! Sou tua fã, tu sabe! Beijao

    ResponderExcluir
  3. kkkkkkkkkkkkkk Foi uma comemoração em grande estilo, a tua cara, Ton!
    E eu só consegui rir, pelamor. E também fiquei com medo de experimentar comida japonesa, viu?

    Beijo!

    ResponderExcluir
  4. Olha, ri muito com essa história.
    Ninguem merece comida japonesa, um churrasco é muuuuuuito mais apetitoso.
    E olha só, a Dani que manda viu??
    Bj

    ResponderExcluir
  5. ma q beleza hein? hahahahaha só tu mesmo, pelo menos tu há de convir que vai ficar na história tua boda não é??
    E quando vão aumentar a família?
    (sorry pela frasezinha)
    Bju guri...

    ResponderExcluir
  6. Chorei de tanto rir!!
    Ótimo texto!

    E o que seriam das bodas sem uma boa história para contar? :)

    ResponderExcluir

<< >>