Outra partida e talicoisa

Olha eu aqui novamente abrindo a caixa de textos para escrever a respeito de alguém que fez a sua passagem para o plano espiritual. Ao mesmo tempo em que me parece curioso, devo confessar que também fico incomodado com a fase que vive minha produção textual. De todo modo, não posso deixar de fazê-lo, seja por questão de justiça, ou puramente para um desavisado registro póstumo.

Explico: David Coimbra foi talvez a grande inspiração do estilo de escrita que um dia tive. Falo no pretérito porque sinceramente não enxergo mais a completude de outrora na construção de qualquer linha redigida por mim. As pessoas mudam, eis o tema central de hoje, e não há mal algum nisso. Aliás, não há mal em lugar nenhum, a não ser nos olhos de quem insiste em julgar e empurrar sua tese a fórceps, fato este bastante corriqueiro nestes dias que vivemos.

Bueno, para falar sobre o David eu preciso, necessariamente, dividir a conversa em duas partes bastante distintas. Quando descobri o cronista David Coimbra, lá no início dos anos 2000, corria nas minhas veias a pujança adolescente, aquela efervescência de hormônios que faz parecer que a vida é um morango. Naquela época - e percebam que estamos falando de duas décadas atrás - não havia polarização; a instantaneidade da internet ainda engatinhava; não existiam Netflix, Instagram, TikTok; algumas pessoas ainda encontravam distração na leitura de blogs e na redação de testimonials no Orkut, nem que fosse somente para "ficar no topo". Os jovens desavisados não entenderiam as aspas, mas fico tranquilo porque ninguém com menos de 30 anos acessa este espaço. Risos.

Fiquei embevecido com a estilo de David Coimbra. Já gostava de L. F. Veríssimo e Paulo Sant'anna, mas o jeito do David escrever era jovem, despojado, debochado, despreocupado, era como se não existissem regras para ser feliz escrevendo, como se estivéssemos bebendo uma cerveja num boteco qualquer enquanto ele contava algum causo cotidiano. Eu lia as crônicas no site da Zero Hora, que naquele tempo era gratuito diga-se de passagem, e aquela leitura preenchia o meu dia. Aguardava ansioso pela próxima, estava diante de uma genialidade gigantesca e queria aproveitar cada linha de irreverência misturada com finesse, requinte, sarcasmo, vida. Eram textos que falavam de coisas rasas e terrenas, transformando-as em verdadeiras obras de arte.

Resolvi pegar aquilo pra mim. Incorporei aquela maneira de escrever. ÓBVIO, né, queridos, não estou aqui dizendo que fui/sou o novo David Coimbra. Digo isso porque hoje o mundo está chato a ponto de as pessoas conseguirem a proeza de tirarem conclusões obtusas acerca de qualquer frase perdida. Mas eu quis, sim, ser um discípulo daquele estilo. Passei a escrever e a me esmerar na arte de escrever sobre o cotidiano. Introduzi nos meus textos a expressão "talicoisa", cópia descarada do David. O cara era meu mestre literário.

Não dá pra dizer que deu errado. Muita gente comparou meus textos àquele jeito de escrever, recebi fartos elogios, produzi minhas crônicas, compilei num livro, realizei um sonho, foi sensacional. Tudo, tudo empírico. Zero técnica. Escrevia e escrevo por diversão, passatempo, necessidade. Aconteceram convites para colaborar com textos em alguns portais iniciantes, o que culminou em retumbante fracasso. Escrever por encomenda e obrigação não é e nem nunca foi a minha praia.

E aí, meus camaradas, chega a segunda parte da conversa. O tempo foi passando e eu, viciado em David Coimbra, segui acompanhando seus passos, os textos, a inserção em rádio, programas de esporte e, finalmente, as opiniões que passaram a fugir do cotidiano e rumaram para o campo político. O troço foi ficando irreconhecível. Passei a discordar mais do que admirar. De início é como num casamento, você olha e pensa "fulano está diferente hoje, deve ter acordado com o pé esquerdo". E releva. Uma, duas, três vezes. Ora, mas para escritor nunca jurei amor eterno e nem repeti até que a morte nos separe. Era o início da polarização, tempos sombrios na nossa sociedade que perduram até agora. E toda aquela admiração construída minguou, esfarelou o pedestal e, pasmem, de alguns anos pra cá sistematicamente passei a trocar a estação de rádio assim que ouvisse a voz daquele antigo ídolo.

Parágrafo final. As pessoas estão acostumadas a buscarem explicação pra tudo. "Mas veja bem", "mas era gênio", "mas não confunda as coisas", "mas daí tu não pode isso por causa daquilo". Gente. Calma. Não há ódio, rancor ou mágoa. Me causa uma profunda comoção David Coimbra falecer aos 60 anos, idade da minha mãe, ainda mais por conta de uma doença maldita. O que ocorre é que toda a admiração e idolatria que alimentei um dia sofreram uma ruptura muito antes. E assim, seguimos caminhos diferentes. Meus textos também mudaram. Provavelmente, algum amigo deixou de admirar o que escrevo igualmente em função disso. Ok, tudo bem. Ces't la vie.

Que descanse em paz o meu mestre David Coimbra, criador das crônicas mais geniais que já li. O homem responsável pela construção da minha forma de escrever. E de quem no fim da vida eu discordei fragorosamente de toda e qualquer opinião emitida. A verdade é que o mundo ficou chato demais para alguém tão irreverente.

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